Eloiza Marinho
1. Introdução
Pesadelo para uns, demonstração de poder, dominação para outros, é assim a avaliação vivenciada no cotidiano de diversas escolas brasileiras. Em geral, usada como instrumento classificatório, é empregada apenas para aprovar ou reprovar o indivíduo, fatalmente rotulando as pessoas de sábias ou néscias, segregando as “incapazes”.
A avaliação, desse modo, tem sido tratada, equivocadamente, de forma restrita pela escola e pelos educadores. Visa apenas o produto, o resultado, de preferência final, de um processo educativo, confirmado numa nota como que sentenciando o destino escolar do indivíduo e, conseqüentemente, refletindo em sua vida para além da instituição.
Assim, tem-se feito educação. De um lado ficam os alunos, objetos do “fazer pedagógico”, dos objetivos previamente determinados por alguém que, supostamente, já sabe do que precisam, do outro lado está a escola com essa grande responsabilidade de tentar fazer com que o “ensinado” seja aprendido.
A educação abordada, então, de modo tão fragmentado, traduz uma concepção limitada, pouco integrada em suas diversas dimensões. Educação, ensino, aprendizagem, metodologia, conteúdos, objetivos, competências, habilidades e, portanto, avaliação, são elementos considerados, muitas vezes, totalmente isolados dentro do todo, sendo-lhes atribuído fim em si mesmos.
Se os elementos necessários a uma aprendizagem significativa são tratados de modo tão desvinculado, não mais articulados estão os protagonistas dessa escola em construção. Professor, aluno, gestor, técnico, família, cada um ocupa papel delimitado pelo chamado sistema ou pela própria escola que, reclamando das distâncias, não consegue estabelecer nenhuma ação de forma a garantir sua integração.
A realidade é que nem entre os professores há uma prática dialógica consistente e constante, a ponto de se elaborar projetos ou ações que alcancem êxito nas principais demandas relacionadas pelos mesmos. Estudar coletivamente, refletir sobre cada componente que faz a aprendizagem, suas dificuldades e experiências positivas, elaborar suas concepções acerca de cada temática aprofundada, é imperativo para que se vá clareando e fortalecendo as idéias, de modo que se construa uma prática pedagógica, cujas intervenções sejam menos amadoras, mais conscientes e coerentes.
A avaliação, nesse contexto, é até feita para diagnosticar realidades. No entanto, o que se percebe é que o resultado encerra em si, o professor não consegue propor ações de modo a intervir naquele resultado seja satisfatório ou não. Há somente uma constatação do erro e do acerto, uma quantificação do produto, seguida do registro nos diários, boletins ou fichas para posterior divulgação ao aluno ou seu responsável.
“Dar” nota por quê? Para quê? O aluno assim sente: “ganhou nota x, na disciplina y...” O professor, no auge do seu poder, sendo benevolente “dá” uma nota boa, sendo exigente “dá uma bomba”. O aluno não se percebe alguém capaz de conquistar a nota por competência pessoal, nem imagina que pode participar do processo avaliativo como parte de sua formação, da aprendizagem. Essa é a nossa experiência real.
Desse modo, para muitos professores, senão para a maioria, avaliar tem sido um misto de obrigação, de ineficiência, injustiça, enfim há uma sensível dificuldade em vivenciar esse processo de forma tranqüila, coerente com o que se acredita fazer como educador. Parece que tudo termina com a avaliação, vista em geral como realização de provas, testes, atividades, que levam ao final das contas a atribuição de notas ou conceitos, à “sentença” de aprovado ou reprovado (retido, para alguns). Diversificam os termos, permanecem as posturas, pautadas por concepções arraigadas de avaliação como “instrumento sancionador e qualificador” (Zabala. A prática educativa. p. 195).
Para se refletir sobre avaliação, para que se apresente uma proposta coerente, para trabalharmos um modelo mais justo de avaliação, é preciso um repensar da própria prática educativa. O que, como e quando avaliar, considerando a aprendizagem como objeto do processo educativo e aluno como seu sujeito? Quais devem ser os papéis do aluno, professores, demais educadores, a escola, numa perspectiva avaliadora, dentro de uma concepção progressista de educação?
Considerando a metodologia da reconstrução do conhecimento, onde a aprendizagem é prioridade do processo educativo, a avaliação é, necessariamente, considerada como parte de um amplo processo de formação. Não é só diagnóstico, nem resultado final, mas possui várias dimensões, as quais tentaremos apresentar a seguir.
2. Avaliamos por que e para quê?
O compromisso principal da escola com a sociedade em que ela está inserida e, conseqüentemente, com aqueles que a procuram, é com a aprendizagem. Então, democratizar a escola, mais do que oferecer vagas de modo que todos possam ingressar na educação formal, é proporcionar as condições que garantam o direito de todos aprenderem. A avaliação, nesse contexto, só tem sentido se estiver a serviço da aprendizagem real, significativa, portanto atendendo a sua dimensão pedagógica que segundo Pedro Demo,
não pode ser feita de modo abrupto, agressivo, humilhante, mas no contexto
da pedagogia igualitária, para a qual professor se define como quem cuida da
aprendizagem do aluno; isto não resulta em esquivar-se da critica ou
questionamento do aluno; ao contrário, não se aprende sem errar, duvidar,
questionar, do que segue que o aluno precisa também escutar críticas, mas sempre de estilo pedagógico (DEMO. 2004 p.67).
Assim sendo, avaliar contém em si a condição de pluridimensionalidade, no sentido que, ao mesmo tempo em que o sujeito é avaliado também avalia e vice-versa. Mas também, porque todos os partícipes do processo de aprendizagem precisam desenvolver a competência de exercer o ato avaliativo, considerando os diversos elementos que interagem para que de fato aconteça aprendizagem: ambiente escolar, proposta pedagógica, metodologia, modo como se avalia, concepções adotadas para fundamentar a prática educativa, posturas do professor e aluno frente ao desafio de aprender, enfim elementos definidos no Projeto Político Pedagógico das escolas que deveriam ser construídos coletivamente, de modo que todos tivessem acesso ao mesmo e no Projeto Pedagógico Pessoal, onde cada educador deveria apresentar suas reflexões e propostas de trabalho.
Além disso, é importante também considerar aspectos como conteúdos conceituais, procedimentais e atitudinais, procurando assim olhar o aluno numa perspectiva globalizante, como sujeito cognitivo, mas também, social, ético, político, afetivo, humano. Sendo assim, o aluno não pode ser tratado como mero espectador, já que se trata de um processo onde o foco é ele e sua aprendizagem.
Então, se a razão de ser da avaliação é cuidar que o aluno aprenda, é também questionável o sentido da reprovação. Avalia-se para tratar do aprender, portanto avalia-se para promover. Não do modo irresponsável dos que cuidam apenas de maquiar dados estatísticos, de sair dos baixos índices de uma avaliação nacional, mas no sentido de promoção do ser humano, desenvolvendo neste a condição de cidadão participante, capaz de construir pensamento próprio, intervir na sua realidade pessoal e coletiva.
Promoção aqui significa, necessariamente, compromisso com a aprendizagem, com uma educação de qualidade; cuidado para que os alunos progridam, tendo condições de acesso aos bens culturais construídos historicamente pela humanidade, mas sobretudo que tenham garantido o direito de conquistar novos espaços, transformar a própria história e ajudar na construção da história coletiva, “fazendo porque sabe e sabendo porque faz”, portanto conscientes da importância do seu papel na construção de uma sociedade mais justa e fraterna.
Portanto, pensar em avaliação, obrigatoriamente nos remete a uma reflexão mais ampla sobre as concepções que norteiam a prática pedagógica do educador, as ações que este desenvolve no cotidiano, as relações que se estabelecem no ambiente escolar e sobre as decisões que deverão ser tomadas a partir do que foi avaliado. Tudo isso motivado pelo compromisso de “cuidar que o aluno aprenda”.
3. Avaliar para medir ou para reconstruir?
Como parte de um amplo processo que é a aprendizagem, a avaliação perpassa todos os níveis de construção desta. Não se aprende por osmose, mas é preciso consciência. Saber o que vai bem ou não, as dificuldades que o aluno encontra para realizar determinadas ações, tarefas ou atividades, ou ainda, saber os caminhos que foram usados para que ele alcançasse certos resultados, são informações importantes para o desenvolvimento da aprendizagem. E é nessa perspectiva que se precisa olhar para a avaliação.
Avaliar envolve conhecimentos cognitivos, posturas, atitudes, ações dos sujeitos que estão diretamente envolvidos com a aprendizagem. Envolve planejamento, trabalho docente e discente, por isso é tão complexo.
Então, definir uma linha teórico-metodológica a ser seguida, tanto quanto as concepções que devem permear a ação profissional do educador, são condições fundamentais para uma prática coerente, consistente, com qualidade técnica e política. Portanto, sendo parte de um amplo processo como é a educação, a avaliação não deve se constituir uma ação unilateral, já que envolve diversos sujeitos e situações. Tampouco pode reduzir-se a verificação final de um período de estudo.
Então, como tratar a avaliação?
Sendo vista numa perspectiva diagnóstica, é compreendida como investigação, pesquisa de diferentes dados de uma determinada realidade. É tratada como olhar acolhedor sobre um contexto de aprendizagem, portanto precisa ser constante, permanente. Deve ser pautada em critérios claros e conhecidos, tanto pelo avaliador quanto por aquele que é avaliado, de modo que se possa acompanhar o desenvolvimento e propor intervenções viáveis para garantir uma aprendizagem significativa.
Sendo diagnóstica, pressupõe-se que a avaliação leve a uma tomada de decisão, pois não basta olhar para a realidade, constatar avanços e/ou dificuldades de aprendizagem do aluno, inadequação de metodologia por parte do professor, entre outros elementos que possam ser identificados ao avaliar, se isto não gerar uma reação no professor enquanto mediador do conhecimento, cuja função precípua é, segundo Demo, “cuidar para que o aluno aprenda”; no aluno, protagonista do processo educativo; na escola, ambiente responsável por produzir conhecimento, promover aprendizagem.
Quanto à perspectiva emancipatória, propõe-se que o ato de avaliar suprima a função castradora de tantos séculos que fez da avaliação mais um instrumento de poder, de coerção, de dominação, mas que assuma a condição de colaboradora na formação do cidadão autônomo, construtor de historia própria, consciente do seu papel no cotidiano coletivo, sujeito participante na sociedade em que está inserido.
Nesse sentido, destaca-se também o caráter dialógico que deve pautar uma postura democrática de educação. Ser avaliado e avaliar, propor intervenções mais adequadas frente às dificuldades apresentadas, ter acesso aos instrumentos avaliativos com seus respectivos objetivos e critérios, espaço garantido para discutir sobre notas (quando houver) e que sempre venham com um parecer, de modo que se acompanhe a evolução da aprendizagem pessoal e que se tenha a oportunidade de, questionando – nota e/ou parecer – se assim achar necessário, possa reelaborar a partir das orientações recebidas, são posturas necessárias a quem se propõe educar na perspectiva da reconstrução do conhecimento.
A avaliação, então, deve provocar o olhar atento e amoroso do educador para uma reorientação da sua prática pedagógica, alicerçada em concepções claras de educação, escola, aluno, professor, aprendizagem, homem/mulher, sociedade, que se quer ajudar a construir. Daí a importância de que esse profissional mantenha-se em permanente formação, de modo que sua ação como educador tenha a marca da profissionalidade, no que concerne ao conjunto de competências técnica, política, alicerçada em princípios e valores éticos que tornam sua prática intencional, menos amadora, mais comprometida, consciente e crítica.
4. Como avaliamos?
Freqüentemente nos deparamos com concepções reducionistas de avaliação, sendo esta confundida com alguns instrumentos normalmente utilizados para avaliar. Daí vem a “semana de avaliação”, quando são feitas provas e/ou testes que, quando muito, servem para verificar se o aluno memorizou certos conteúdos trabalhados ao longo de um período ou bimestre letivo.
Outros educadores, desejosos de superar as limitações das provas e testes que avaliam momentaneamente e apenas alguns aspectos da aprendizagem, adotam alguns critérios, os quais denominam aspectos qualitativos, referindo-se a atitudes como participação, assiduidade, “comportamento”, pontualidade, interesse, entre outras.
Tanto os chamados aspectos quantitativos, representados pelos instrumentos escritos (provas, testes, textos, trabalhos em grupo e individuais) quanto os qualitativos que correspondem às posturas, valores, disciplina, são mensurados, atribuídas notas e calculadas as médias correspondentes a um determinado período do ano escolar.
O aluno, nesses casos, é tratado de forma passiva. Recebe a nota que informa se foi aprovado ou não, se tem que “fazer a recuperação ou não”. Esta, então, é vista como uma oportunidade oferecida pela escola ou pelo professor para que o aluno tenha chance de alcançar a nota mínima aprovativa. O enfoque é dado sobre a nota, no instrumento utilizado para avaliar, não no processo construído até aquele momento.
Numa concepção de aprendizagem em que a pesquisa e elaboração estão inseridas como metodologia pautada na reconstrução do conhecimento, avaliar constitui-se parte do processo educativo. O foco aqui está sobre o aluno e sua aprendizagem. Assim, a avaliação possibilita analisar o processo, a realidade, o contexto em que se insere a aprendizagem, o caminho construído pelo aluno, mediado pelo professor a partir de fundamentação teórico-metodológica, para que se proponha intervenções adequadas para a reconstrução permanente do conhecimento.
A grande questão, portanto, não está, inicialmente, sobre quais instrumentos são mais adequados para avaliar responsavelmente, mas no cuidado com a elaboração e com os resultados alcançados com cada instrumento. É importante clareza sobre as concepções que norteiam cada ação pedagógica, a intencionalidade técnica e política do educador, o que leva o profissional a optar por uma determinada corrente e não por outra para fundamentar seu fazer, enfim, buscar a coerência entre reflexão e ação.
É de acordo com as convicções que se opta por uma prática avaliativa que leve ao exercício do saber pensar e da argumentação com fundamento, que contribui para a formação do cidadão participativo ou do sujeito passivo, que leve, enfim, à aprendizagem compreendida como capacidade de elaboração própria, de transformar informações em conhecimento e de fazer uso deste em diferentes circunstâncias da vida.
Avalia-se a rotina escolar a partir de objetivos e critérios claros, com o olhar de quem cuida, de quem tem compromisso de garantir o direito de todo cidadão aprender.
5. Conclusão
Compreendida como parte do processo educativo, a avaliação deve ser permanente. Sua razão de ser é “cuidar da aprendizagem”. Só faz sentido avaliar na perspectiva de reorientação da ação educativa, do fazer pedagógico, cujo enfoque principal deve ser o aluno e seu processo de aprendizagem.
Avaliamos para garantir que o aluno aprenda, para promover o sujeito na condição de cidadão autônomo que constrói e reconstrói pensamento próprio, capaz de intervir na história pessoal tanto quanto na coletiva. Portanto, pensar avaliação é refletir sobre educação, escola, aprendizagem, professor e aluno, sociedade, mundo; é ter clareza das concepções que permeiam a prática pedagógica assumida pelo educador; é diagnosticar uma realidade para poder intervir significativamente nela; é promover o diálogo crítico-argumentativo, de modo que avaliar não seja uma ação unilateral, mas que, superando a sua utilização como instrumento de poder e coerção, gere uma postura emancipatória nos protagonista de uma educação, cujo desafio se dá no enfoque da aprendizagem reconstrutiva política. Enfim, que avaliar seja um contínuo olhar amoroso que leve a ações que garantam para todos o direito de aprender.
Referências
DEMO, Pedro. Ser professor é cuidar que o aluno aprenda. 2 ed. Porto Alegre: Mediação, 2004.
HOFFMAN, Jussara. Avaliação Mediadora.
LIBÂNEO, José Carlos. Organização e Gestão da Escola: Teoria e Prática. Goiânia: Alternativa. 2001.
LUCKESI., Cipriano. Avaliação da aprendizagem escolar.
PERRENOUD, Philippe. Avaliação: da excelência à regulação das aprendizagens – entre duas lógicas. Porto Alegre: Artes Médicas Sul. 1999.
ZABALA, Antoni. A pratica educativa: como ensinar. Porto Alegre: ArtMed. 1998.